10 abril 2014

D. Dinis, um poeta de qualidade

por João Aguiar (artigo originalmente publicado na revista Super Interessante nº 102 e republicado na mesma revista nº 192)

Chamam-lhe "O Lavrador", mas o cognome é pobre para caracterizar este monarca excecional como governante, diplomata e homem de cultura.


Foi o sexto rei de Portugal. Nasceu em 1261 e subiu ao trono com 18 anos - porém, segundo consta, as suas grandes qualidades começaram a revelar-se bem mais cedo. De facto, durante a infância de D. Dinis, havia uma pendência entre Portugal e Castela relativa ao Algarve: a posse efetiva deste reino estava nas mãos do nosso D. Afonso III, mas Castela reclamava a posse de jure invocando uma doação feita anteriormente pelo rei mouro de Niebla ao herdeiro do trono castelhano. Não há um conhecimento exato dos factos históricos; o que se sabe é que quando D. Dinis tinha 12 anos, atravessou a fronteira para ser armado cavaleiro pelo seu avô materno, Afonso X de Leão e Castela; e sabe-se também que, pouco depois, Afonso X - contra a vontade, aliás, da nobreza castelhana - concedeu ou reconheceu ao seu neto português a posse de jure do Algarve. A interpretação de alguns historiadores é que D. Afonso III terá lançado a ideia de que o seu primogénito deveria ser armado cavaleiro pelo rei de Castela e depois terá dito ao muito jovem D. Dinis o equivalente a isto: "Meu filho, quando estiveres com o avô, dá-lhe muitos beijinhos e pede-lhe o Algarve!" O que, a ser verdade, situa a primeira ação diplomática de D. Dinis na tenra idade dos 12 anos...
Aqueles dois Afonsos a que D. Dinis estava ligado - o pai, Afonso III de Portugal, e o avô, Afonso X de Castela - terão certamente contribuído para que o jovem se tornasse um dos monarcas europeus mais cultos do seu tempo. D.Afonso III vivera na corte de França e a poesia provençal era-lhe familiar; quanto a Afonso X, o Sábio, tornou-se famoso, justamente, pela sua cultura e foi um excelente poeta, não só em castelhano como em português (provam-no as Cantigas de Santa Maria). D. Dinis recebeu, pois, estas e outras influências; mas, para além da sua própria obra literária, sobressai a sua ação como governante, ao mandar fazer traduções de várias obras importantes, ao determinar que os processos e atos judiciais passassem a ser redigidos em português e não já em latim, ao proteger os colégios fundados em Lisboa pelo seu precetor Domingos Anes Jardo e, enfim, ao criar a universidade.


Tudo quanto quis...
Segundo um velho dito popular, "El-Rei D. Dinis / Fez tudo quanto quis". Não terá sido exatamente assim, claro, mas é verdade que ele conseguiu, com muito esforço, muita habilidade e muita diplomacia, pôr em prática numerosas leis e disposições dos seus antecessores que, até então, não tinham sido aplicadas. E isto, muito particularmente, no que se refere às questões que opunham a coroa ao alto clero, em cujas mãos se encontrava - em muitos casos, de modo ilegítimo e fraudulento - a propriedade de uma substancial parte do reino. À conta desse conflito, por várias vezes os reis de Portugal haviam sido excomungados. D. Dinis, usando de um sábio misto de firmeza, diplomacia, teimosia e paciência, conseguiu resolver essas questões e para tal logrou mesmo, a certa altura, conquistar o apoio do poderoso arcebispo de Braga e do bispo de Coimbra.
Ao mesmo tempo, o soberano reorganizava as leis e, enquanto ia resolvendo os assuntos com o clero, resolvia também os abusos de muitos nobres; para tal, mandou fazer inquirições, que deviam apurar sobre a validade e a legalidade de padroados, "honras" e outros direitos de que gozavam os ricos-homens, cavaleiros e clérigos. Quanto à agricultura, a sua obra foi, de facto, vastíssima (tem certa justificação o cognome de "Lavrador"...), porque ela traduz-se numa verdadeira e profunda reforma agrária que não só visou o melhor aproveitamento das terras aráveis como - o que é notável - denotou uma preocupação de justiça social, e isto, muito especialmente, no Alentejo (...).
A atenção do rei não se fixou somente na agricultura. Cuidou da circulação dos produtos, protegendo e incentivando as feiras, ocupou-se da exploração mineira e tratou de fomentar a atividade marítima, desenvolvendo a marinha. a verdade é que não houve praticamente um setor de atividades em que D. Dinis não interviesse - e, regra geral, acertadamente. Também se lhe deve a criação da Ordem Militar de Cristo, para a qual transitaram os bens e os cavaleiros da Ordem do Templo; Portugal foi um dos poucos países europeus onde os templários não foram, de todo, perseguidos.

Prestígio internacional
Seria agradável poder dizer que, com tantas qualidades e um reinado longo (46 anos), D. Dinis teve uma vida pacífica e tranquila, mas não foi assim: por várias vezes enfrentou a guerra civil: primeiro conta um irmão seu que lhe disputava o trono e, mais tarde, contra o seu próprio herdeiro, o futuro D. Afonso IV. D. Dinis, mostrando embora um grande respeito pela esposa [D. Isabel, filha de D. Pedro III de Aragão], foi bastante dado à infidelidade conjugal, coisa corrente entre os reis da época, e teve, por essa via, vários filhos (...).
No entanto, estas desavenças internar não minaram o prestígio internacional de D. Dinis: prestígio como poeta e homem de letras, mas também como político e diplomata. Tanto assim que foi chamado a servir de árbitro nos conflitos internos de Castela e também numa questão que opunha os reinos de Castela e Aragão, o que prova ter ele sido o soberano mais respeitado em toda a península, na sua época.
Enfim, um verdadeiro super-português...


A melhor poesia
Após a morte de D. Dinis, um jogral leonês escreveu um poema em que dizia: "Os namorados que trovam de amor/ todos deviam grão dó [luto] fazer / e não tomar em si nenhum prazer /porque perderam tão bom senhor / como é el-rei D. Dinis de Portugal". O lamento é compreensível, quando se tem em conta o nível cultural da corte portuguesa naquele tempo, a proteção do rei aos trovadores e jograis - e, acima de tudo, a qualidade da sua poesia. Uma qualidade que ainda hoje podemos apreciar, pois nem o tempo nem as diferenças do português antigo chegam para lhe tirar o brilho. E isto não se refere apenas ao célebre poema "Ai flores do verde pinho", mas a muitos outros, tanto cantigas de amigo como cantigas de amor como, até, cantigas de escárnio. Independentemente dos seus méritos como governante, D. Dinis conserva um lugar importante na literatura portuguesa.


Sem comentários:

Enviar um comentário